Gênero Conto - Tipologia narrativa

O conto é uma obra de ficção. Cria um universo de seres e acontecimentos de ficção, de fantasia ou imaginação. O conto apresenta um narrador, personagens e enredo.

Algumas características:
- É uma narrativa linear e curta, tanto em extensão quanto no tempo em que se passa.
- A linguagem é simples e direta, não se utiliza de muitas figuras de linguagem ou de expressões com pluralidade de sentidos.
- Todas as ações se encaminham diretamente para o desfecho.
- Envolve poucas personagens, e, as que existem se movimentam em torno de uma única ação.
- As ações se passam em um só espaço, constituem um só eixo temático e um só conflito.

Focos narrativos:
·         Primeira pessoa: Personagem principal conta sua história; este narrador limita-se ao saber de si próprio, fala de sua própria vivência.
·         Terceira pessoa: O texto é narrado em 3ª pessoa e neste caso podemos ter:
a) narrador observador: o narrador limita-se a descrever o que está acontecendo, "falando" do exterior, não nos colocando dentro da cabeça da personagem; assim não sabemos suas emoções, ideias, pensamentos; o narrador apenas descreve o que vê, no mais, especula;
b) narrador onisciente: conta a história; o narrador tudo sabe sobre a vida das personagens, sobre seus destinos, ideias, pensamentos; como se narrasse de dentro da cabeça delas.

O conto pode apresentar-se em discurso:
·      Direto: (discurso direto) as personagens conversam entre si; usam-se os travessões. Além de ser o mais conhecido é, também, predominante no conto.
Exemplo:
(...)
Depois da sobremesa, boca pedindo água depois de tanto doce caseiro, o velho Arquimedes     disse:
— Ocês tão bebendo tanta água, sem nojo...


— Bisavô, era brincadeira!
— Eu também fiz uma brincadeira: durante todo esse tempo que fiquei banguela, minha dentadura  ficou de molho, dentro do filtro!
                                                                                                                                 O Bisavô e a Dentadura. Sylvia    Orthof

·      Indireto: (discurso indireto) quando o escritor resume a fala da personagem em forma narrativa, sem destacá-la. Ele conta como aconteceu o diálogo, quase que reproduzindo-o. Exemplo:
“Dois ou três passantes rodearam-no e indagaram se não se sentia bem. Dario abriu a boca, moveu os lábios, não se ouviu resposta. O senhor gordo, de branco, sugeriu que devia sofrer de ataque.
(...)
A velhinha de cabeça grisalha gritou que ele estava morrendo.”
Uma vela para Dario. Dalton Trevisan

·       Indireto livre (discurso indireto livre) é a fusão entre autor e personagem (primeira e terceira pessoa da narrativa); o narrador narra, mas no meio da narrativa surgem diálogos indiretos da personagem como que complementando o que disse o narrador.

               Dicas para escrever um conto:
·               Evite ser prolixo. Economize na quantidade de personagens, nas descrições, na complicação da trama. Evite os rebuscamentos, adjetivações e clichês. Cuidado com a repetição de palavras.
·               Use a ironia e o humor fino, quando possível.
·               Se o conto é dramático, tome cuidado com o exagero e a pieguice (sentimentalidade excessiva).
·               Seja verossímil. Evite contradições no comportamento de seus personagens e no desenvolvimento da história. Lembre-se, no entanto, que a verossimilhança não significa prender-se à realidade.


Leia:
Uma vela para Dario
                       Dalton Trevisan
Dario vinha apressado, guarda-chuva no braço esquerdo e, assim que dobrou a esquina, diminuiu o passo até parar, encostando-se à parede de uma casa. Por ela escorregando, sentou-se na calçada, ainda úmida de chuva, e descansou na pedra o cachimbo.
Dois ou três passantes rodearam-no e indagaram se não se sentia bem. Dario abriu a boca, moveu os lábios, não se ouviu resposta. O senhor gordo, de branco, sugeriu que devia sofrer de ataque.
Ele reclinou-se mais um pouco, estendido agora na calçada, e o cachimbo tinha apagado. O rapaz de bigode pediu aos outros que se afastassem e o deixassem respirar. Abriu-lhe o paletó, o colarinho, a gravata e a cinta. Quando lhe retiraram os sapatos, Dario roncou feio e bolhas de espuma surgiram no canto da boca.
Cada pessoa que chegava erguia-se na ponta dos pés, embora não o pudesse ver. Os moradores da rua conversavam de uma porta à outra, as crianças foram despertadas e de pijama acudiram à janela. O senhor gordo repetia que Dario sentara-se na calçada, soprando ainda a fumaça do cachimbo e encostando o guarda-chuva na parede. Mas não se via guarda-chuva ou cachimbo ao seu lado.
A velhinha de cabeça grisalha gritou que ele estava morrendo. Um grupo o arrastou para o táxi da esquina. Já no carro a metade do corpo, protestou o motorista: quem pagaria a corrida? Concordaram chamar a ambulância. Dario conduzido de volta e recostado à parede - não tinha os sapatos nem o alfinete de pérola na gravata.
Alguém informou da farmácia na outra rua. Não carregaram Dario além da esquina; a farmácia no fim do quarteirão e, além do mais, muito pesado. Foi largado na porta de uma peixaria. Enxame de moscas lhe cobriu o rosto, sem que fizesse um gesto para espantá-las.
Ocupado o café próximo pelas pessoas que vieram apreciar o incidente e, agora, comendo e bebendo, gozavam as delicias da noite. Dario ficou torto como o deixaram, no degrau da peixaria, sem o relógio de pulso.
Um terceiro sugeriu que lhe examinassem os papéis, retirados - com vários objetos - de seus bolsos e alinhados sobre a camisa branca. Ficaram sabendo do nome, idade; sinal de nascença. O endereço na carteira era de outra cidade.
Registrou-se correria de mais de duzentos curiosos que, a essa hora, ocupavam toda a rua e as calçadas: era a polícia. O carro negro investiu a multidão. Várias pessoas tropeçaram no corpo de Dario, que foi pisoteado dezessete vezes.
O guarda aproximou-se do cadáver e não pôde identificá-lo — os bolsos vazios. Restava a aliança de ouro na mão esquerda, que ele próprio quando vivo - só podia destacar umedecida com sabonete. Ficou decidido que o caso era com o rabecão.
A última boca repetiu — Ele morreu, ele morreu. A gente começou a se dispersar. Dario levara duas horas para morrer, ninguém acreditou que estivesse no fim. Agora, aos que podiam vê-lo, tinha todo o ar de um defunto.
Um senhor piedoso despiu o paletó de Dario para lhe sustentar a cabeça. Cruzou as suas mãos no peito. Não pôde fechar os olhos nem a boca, onde a espuma tinha desaparecido. Apenas um homem morto e a multidão se espalhou, as mesas do café ficaram vazias. Na janela alguns moradores com almofadas para descansar os cotovelos.
Um menino de cor e descalço veio com uma vela, que acendeu ao lado do cadáver. Parecia morto há muitos anos, quase o retrato de um morto desbotado pela chuva.
Fecharam-se uma a uma as janelas e, três horas depois, lá estava Dario à espera do rabecão. A cabeça agora na pedra, sem o paletó, e o dedo sem a aliança. A vela tinha queimado até a metade e apagou-se às primeiras gotas da chuva, que voltava a cair.

Texto extraído do livro "Vinte Contos Menores", Editora Record. Rio de Janeiro, 1979, pág. 20. Este texto faz parte dos 100 melhores contos brasileiros do século, seleção de Ítalo Moriconi para a Editora Objetiva.

  

A OPINIÃO EM PALÁCIO
O Rei fartou-se de reinar sozinho e decidiu partilhar o poder com a Opinião Pública.
― Chamem a Opinião Pública ― ordenou aos serviçais.
Eles percorreram as praças da cidade e não a encontraram. Havia muito que a Opinião Pública deixara de freqüentar lugares públicos. Recolhera-se ao Beco sem Saída, onde, furtivamente, abria só um olho, isso mesmo lá de vez em quando.
Descoberta, afinal, depois de muitas buscas, ela consentiu em comparecer ao Palácio Real, onde Sua Majestade, acariciando-lhe docemente o queixo, lhe disse:
― Preciso de ti.
A Opinião, muda como entrara, muda se conservou. Perdera o uso da palavra ou preferia não exercitá-lo. O Rei insistia, oferecendo-lhe sequilhos e perguntando o que ela pensava disso e daquilo, se acreditava em discos voadores, horóscopos, correção monetária, essas coisas. E outras. A Opinião Pública abanava a cabeça: não tinha opinião.
― Vou te obrigar a ter opinião ― disse o Rei, zangado. ― Meus especialistas te dirão o que deves pensar e manifestar. Não posso mais reinar sem o teu concurso. Instruída devidamente sobre todas as matérias, e tendo assimilado o que é preciso achar sobre cada uma em particular e sobre a problemática geral, tu me serás indispensável.
E virando-se para os serviçais:
― Levem esta senhora para o Curso Intensivo de Conceitos Oficiais. E que ela só volte aqui depois de decorar bem as apostilas.

Carlos Drummond de Andrade. In Contos Plausíveis.José Olympio, 1985


A VOLTA DO GUERREIRO
Os homens que voltaram da guerra traziam feridas e pesadelos. Encontraram suas amadas indiferentes. Passara tanto tempo que algumas nem se lembravam deles, e muitas tinham estabelecido novos amores.
Uma, entretanto, permaneceu lembrada e fiel, e atirou-se com fúria passional aos braços do ex-guerreiro. Ele a repeliu, dizendo:
― Não quero mais ver a guerra diante de mim.
― Eu não sou a guerra, sou o amor, querido ― respondeu-lhe a mulher, assustada.
― Você é a imagem da guerra, você me agarrou como o inimigo na luta corpo a corpo, eu não quero saber de você.
― Então farei carícias lentas e suaves.
 O inimigo também passa a mão de leve pelo corpo do soldado caído, para tirar o que houver no uniforme.
― Ficarei quieta, não farei nada.
― Não fazer nada é a atitude mais suspeita e mais perigosa do inimigo, que nos observa para nos atacar à traição.
Separaram-se para sempre.

Carlos Drummond de Andrade. In Contos Plausíveis.José Olympio, 1985


DESEMPREGO
― Não está me reconhecendo? Sou a terceira mulher do Sabonete Araxá. Aquelas do anúncio.
― Eu sei. As três mulheres do poema de Manuel Bandeira.
― Não, do anúncio do sabonete. O poema veio depois, nós já existíamos antes.
― E que foi feito das duas outras?
― A primeira passou a trabalhar para a Sentinela Juropapo. A segunda está no galarim, só trabalha para a Secom. Eu estou desempregada, não dá para me arranjar a boa mordomia no INPS? Sei que é difícil me aposentar, porque já tenho idade de sobra, mas...

Carlos Drummond de Andrade. In Contos Plausíveis.José Olympio, 1985


EXCESSO DE COMPANHIA
Os anjos cercavam Marilda, um de cada lado, porque Marilda ao nascer ganhou dois anjos da guarda.
Em vez de ajudar, atrapalhou. Um anjo queria levar Marilda a festas, o outro à natureza. Brigavam entre si, e a moça não sabia a qual deles obedecer. Queria agradar aos dois, e acabava se indispondo com ambos.
Tocou-os de casa. Ficou sozinha, sem apoio espiritual mas também sem confusão. Os dois vieram procurá-la, arrependidos, pedindo desculpas.
― Só aceito um de cada vez. Passa uns tempos comigo, depois mando embora, e o outro fica no lugar. Dois anjos ao mesmo tempo é demais.
Agora Marilda é o anjo da guarda dos seus anjos, um de cada vez.

Carlos Drummond de Andrade. In Contos Plausíveis.José Olympio, 1985